Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

INSÔNIA

Olhar no escuro. As sombras ganham formas, dançam no pensamento e despertam algumas lembranças. Por vezes, o breu desenha um espelho, assinala um horizonte perdido no tempo, preenche um vazio...
O sono entrecortado. A noite invade o quarto, emoldurada na janela de ontem. Tantas inquietações brilham no céu de uma mente insone. Movimentos em vão. Viro na cama enquanto o pensamento permanece suspenso num ponto obscuro. Tento relaxar, mas o medo se prolonga no limite das impossibilidades.
Por que os problemas ganham projeções de extensões exacerbadas na ausência de claridade?
Novas sombras...
O tempo está pautado nos sons que ecoam nas paredes. O tempo que grita os instantes e me torna refém das horas... A engrenagem de um pequeno relógio, a pequena sombra na prateleira... Cada piscar, um ruído, uma lembrança... O coração palpita, tento em vão buscar a saliência dos sonhos. O olhar perdido em sombras, fragmentos cadenciados...
Levanto-me. Na janela, observo um mundo em silêncio, aberturas em preto-e-branco, vestígios de dia, fantasias de noite... Costuro o contexto com pequenos quadros... O relógio fragmenta as percepções. O tempo passa e o sono não vem...
Busco um livro. Quero esquecer de mim, refugiar-me na prosa do contemporâneo Fábio Campana. Sou seduzida por uma ilustração enigmática: um útero preso a um rabisco, talvez um amontoado de folhas secas... As possíveis interpretações de uma abstração. Concretizo as emoções, abrigo-me em certezas...
O título “Todo o sangue” deixa correr nas veias a essência. O início metafórico - insônia, revelações e peregrinações - escreve os versos de um poema distante...
“Houve um menino. Um quintal, uma cetra, o alvo e o seu vôo. Algazarra de pássaros e crianças. Primeira geografia. Territórios de descobertas. Movia-se como suserano dos atalhos, dos becos e dos campinhos.”
O chão das primeiras palavras cria a expectativa de uma longa jornada. A linguagem do autor se confunde com minhas lembranças. A leitura se transforma... Sinto-me alar com suas buscas. O escritor mergulha em sua biografia, compreende-se no olhar plural dos personagens. Sinto vertigem! Como lê-lo sem flutuar sobre o plano da angústia e do medo? Sem aterrissar nas sombras de um tempo marcado com emoções e pensamentos?
“Território de descobertas.” Talvez envelhecer seja apenas a ocultação de alguns solos, seja absolutamente a perda dos atalhos às “primeiras geografias”, ou apenas uma conjugação intempestiva...
Houve uma menina...
No primeiro capítulo, acompanho as espirais do insone escritor. Tento me reescrever, me interpretar... O menino amadurece em um rapaz sonhador e envelhece como um homem fantasiado em ouro, glória e poder. O personagem multiplica o significado nas possíveis metáforas. O que ocorreu à margem das folhas germinadas? Todo o sangue, a vida a pulsar no correr das horas, as inquietações estancadas nos veios da insônia, as dores de sobrevivências...
A atmosfera do sonho é iluminada no que resta da juventude. Quase um instante. Uma eternidade. Os gritos, as perguntas e a agonia, escritos na ficção, confundem-me com a marcação do relógio. Primeira pessoa. O tempo ecoa nos subterrâneos das emoções. A tênue linha separa a realidade das insônias. O passado bordado nas palavras, o presente retalhado nos bloqueios inconscientes, o futuro marcado pela lucidez dos atos...
Todo o medo. Guardo reticente a compreensão. Houve uma certeza que se desfez na escuridão...
“Houve um homem que se desgarrou do jovem e lançou o menino no limbo e refugiou-se na indiferença dos cínicos. Houve o sonho branco do esquecimento.”
A insônia de Fábio Campana abre uma nova janela. A trajetória iluminada de lembranças e as penumbras tantas vezes analisadas como novas sombras descerram a noite encarcerada nas indefinições. Os novos enigmas, as revelações, as peregrinações... Presencio o distanciamento da criança, compreendo a indignação do jovem cheio de ideais perdido nas inconstâncias do mundo, desfaço-me do homem vestido com a pele do algoz.
Houve a criança, restou o ar de uma mocidade resgatada no sonho, a resignação de uma “memória sem alma”...
“E exilou-se na escuridão.”
Tento dormir, ancorar nas palavras sem compreender a real profundidade dos mares em que me aventuro. Guardo o livro na cabeceira e apago a luz. Novas sombras me assustam. Mudaram a trajetória das horas. O relógio invertido cria um novo cenário: a menina adormece ao lado; a jovem tenta, em vão, encontrar-se no rosto talhado de anos; a mulher, refém das recordações, perde o sono...
Novas espirais... Não há exílio possível na atormentada escuridão. Sou as tantas personagens que brilham na ribalta esquecida. Reacendo a luz e amanheço acompanhada das rubras palavras de Fábio Campana. Em silêncio, acompanho suas confissões.
Olhar no escuro... A construção do retrato dimensionado nas vivências do autor serve de alicerce para o despertar insone do novo dia.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 21/06/2005


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