Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

ALMAS GÊMEAS

Todos de preto. Sombrias faces lamentam a morte com ainda recortes de vida. Reuniões familiares sem encontros marcados. Olhos salgados. Mareados de longínquos horizontes, viagens sem retorno, ancoram as velas no cais do abandono e pranteiam mais um náufrago.
Admirava-me com a importância que a vida assumia. A feição do morto estava tranqüila, rodeada de entes queridos. Escutei que ele se preparara para este momento durante sete meses. A doença já estava em todo o corpo, era viver e esperar, esperar e...
Cinco horas da tarde. O tempo passou e nem percebi. Corri para casa. Tudo em minha vida é programado - os filhos chegam às seis do colégio, o marido, às sete do trabalho, e jantamos às oito.
Sentada à mesa, observava minha família. Como eu havia sido agraciada: um marido bom e um casal de filhos saudáveis. Alimentava-me daquele encontro, escutando as histórias do dia.
Fui lavar a louça. Deixei escorrer a água quente nos pratos, passei o detergente, sequei-os... Passei um pano na cozinha e sentei para ver televisão.
Meu marido estava no escritório no computador. Não sei o que tanto fazia, mas saía de lá satisfeito e ia dormir. Algumas noites me procurava excitado.
Deitada na cama, esperando que ele viesse, lembrei-me da feição do morto, da família... A vida era importante! Os mortos eram prova disso.
Gosto de me fazer presente quando o que resta é a dor, compartilhar a saudade, sentir o cheiro das flores murchas... Vou a dois ou três velórios por semana em segredo. Minha família não sabe que gosto de viver a morte alheia.
Meus filhos nasceram no dia de Cosme e Damião há dezessete anos. São gêmeos. O tempo rompeu definitivamente nosso cordão. Sinto-os distante entregues aos problemas cotidianos, até mesmo a menina não me confidencia suas angústias.
Arrumo a mesa do café da manhã. Disponho as xícaras, os bules, os pães... Tudo da forma habitual. Sento à mesa junto com meu marido. Sempre compartilhamos os primeiros alimentos.
- Querida, seus cabelos estão extremamente oleosos, seria bom usar o xampu adequado...
- Um corte também... Cabelos compridos estão fora de moda...
Fiquei intrigada com as observações de meu marido. Durante todo o tempo de convivência, ele nunca fez comentários sobre meus cabelos e agora dava dicas de tratamento... Por certo, deve ter escutado a conversa de alguma secretária.
Para encerrar o caso fui a um cabeleireiro perto de casa.
Ele estava radiante, pois estava juntando dinheiro para fazer uma intervenção cirúrgica.
- Ainda me livro disso... Estou com quase todo o dinheiro...
- Já estou pensando num novo amor. Uma cartomante previu que vou encontrar minha alma gêmea...
Demorei a entender tudo o que ele falava. Era um homem maquiado com peito e unhas vermelhas enormes. Talvez tenha sido preconceito, mas não me senti bem com suas mãos em meus cabelos.
Confesso que ficou bonito o novo corte.
Ainda pude ir a um enterro de uma avó tradicional.
- Ficou bonito... Talvez algumas luzes...
Todos repararam em meu cabelo, até os adolescentes. À noite, meu marido me procurou extremamente excitado, parecia o rapaz que me deflorou. Enquanto me penetrava por trás, puxava meus cabelos com violência. Sentia-me como um animal sendo domesticado, dominada completamente.
Doía o ventre. Tal posição possibilitava uma penetração mais profunda e perfurava o colo do útero. Começou a dedilhar o clitóris com força. No início, a dor era mais forte, mas fui sentindo o corpo anestesiar, uma sensação estranha... Queria gritar...
Ele murmurou algo que não consegui compreender. Dormimos profundamente.
Tive sonhos estranhos e agitados. Quando acordei, eles sumiram...
Não fui aos compromissos fúnebres durante a semana. Os filhos continuavam na distante adolescência e meu marido no computador.
Tudo estaria como de costume, se não fossem os arroubos sexuais. Passava horas sentado na frente do computador e, quando ia para cama, dominava-me completamente.
Uma noite propôs fazer sexo anal, falou de realização e desejo... Entre um casal... Ele seria carinhoso...
Fiquei assustada. Pensei que nunca passaria por isto... Fingi que não estava entendendo... Sexo anal! Pensar nestas variações depois de dezenove anos...
Resisti muitas noites... Aleguei dor, saúde, mas nada adiantava, ele insistia diariamente em sua realização...
Retornei aos velórios. Observava a dor das viúvas e tentava compor o papel de esposa. Meu marido teria direito ao uso irrestrito de meu corpo? E se sentisse prazer e acostumasse?
As famílias reunidas e o morto com feição tranqüila me convenceram. Temos de tentar tudo enquanto estamos vivos.
Tentei algumas noites. Estava tão assustada que me retraía por completo. Impossibilitava a penetração e sentia mais dor... Mas consegui...
A relação estava mudando.
No dia seguinte, fui a dois velórios. No primeiro, passei longos momentos observando a viúva... Será que ela também realizava o marido? No segundo, era uma senhora solteira, sem amor e sem filhos...
Quando o cortejo do enterro já estava perto do mausoléu, observei meu marido caminhando com uma braçada de rosas vermelhas na direção oposta.
Escondi-me na multidão. Não queria que me visse. Descobriria meus compromissos vespertinos. Corri em direção à porta de entrada.
Não me preocupei com o que ele estava fazendo no cemitério. Afinal, todos temos mortos para agradar!
As noites seguintes seriam de novas entregas. Coitos diversos, tantas posições...
- Está perdendo o corte...  Precisa fazer um banho de óleos vegetais...
Fui novamente ao salão. O cabeleireiro estava exultante. Iria fazer a cirurgia. Havia encontrado sua alma gêmea como a cartomante previu: um homem maduro que sabia o que queria. Era o tipo que manda flores e chocolate.
- Ele será meu primeiro homem!
Demorei a compreender. Como o cabeleireiro faria uma operação de mudança de sexo, ganharia uma vagina novinha e virgem, poderia se dar ao luxo de brincar de donzela.
Deflorar um homem? Quem seria esse homem maduro?
O salão iria fechar por vinte dias. Quando fosse reaberto já estaria com o novo nome "Aconchego da Cirley".
Voltei para casa cansada. A ansiedade do travesti me incomodava. Falava demais, expunha-se de forma vulgar. Iria se transformar numa borboleta quando lhe abortassem o casulo!
Meu marido começou a chegar irritado em casa. Estava sempre preocupado e distante. Os filhos foram completamente indiferentes às mudanças de humor do pai.
- Estou com dor de cabeça.
- A comida está sem sal...
Os dias foram passando. Diante de tanta irritação, evitava encontrá-lo e, quando ele deitava, fingia já estar dormindo.
Passei a ir diariamente nos velórios agendados no jornal. Buscava, na reunião dos familiares e na dor, motivos para me sentir feliz por estar viva. Sempre desconhecidos... Não podia macular com pessoalidade momentos tão intensos de vivências.
- Tem um cabelo no macarrão...
- O cheiro do peixe está forte.
Angustiava-me a mudança de temperamento. Depois de alguns meses de profundas experiências sexuais, há duas semanas nos tratávamos como irmãos.
- Teu cabelo está caindo é melhor fazer um tratamento. Tem uma fórmula importada especial para queda... Compre também um óleo vegetal para pontas...
Meu cabelo havia virado uma obsessão. Quase não nos falávamos e as poucas palavras que trocávamos era sobre o cabelo e como deveria agir para deixá-lo mais saudável.
Voltei ao salão, agora da Cirlei. Ela estava vestida com roupas esvoaçantes amarelas e sandálias de grandes saltos dourados. Estava extremamente feliz.
A operação foi um sucesso e a vagina implantada era idêntica a de uma menina moça. Sua alma gêmea já havia visto, mas não poderia penetrá-la até que os pontos internos estivessem bem cicatrizados.
Tudo estava perfeito. O tempo era seu aliado na conquista do amor, a espera cria grandes expectativas.
- Conheci minha alma gêmea na Internet... Freqüentei tanto inferninho para encontrá-lo no site “Existe entre nós”...
- Ele queria até largar a mulher e os filhos... Casamentos não são iguais aos encontros de almas gêmeas. Sou a alma gêmea, a outra!
- Imagine quantas encarnações passamos para nos reencontramos... Dizem que existem almas que nunca se encontram... Estão fadadas a viver em busca...
Voltei para casa. O papo da alma gêmea havia consumido o que restava de tranqüilidade em mim. Homem, mulher, alma gêmea... Cirlei queria dominar o mundo com sua pluralidade.
Jantar, televisão... Arrumei a casa e fui deitar...
Ainda não havia adormecido, quando um impulso maior me fez levantar e ir até o escritório.
Meu marido virou-se assustado. Estava se masturbando e no monitor ainda pude ver com letras vermelhas as palavras "... entre nós".
Descobri tudo. Quanta perversão! Computador, cabelos, coitos, maus tratos, cabeleireiro, vaginas implantadas, almas gêmeas...
Peguei a tesoura na escrivaninha e o apunhalei várias vezes pelas costas ainda com o pênis na mão. Corri ao banheiro e cortei meus cabelos na raiz. Não queria que as mãos daquele homem permanecessem em minha cabeça. Não queria mais nenhum toque, queria a possibilidade do morto, o silêncio, as mãos geladas já imunes ao pecado.
Morreu ainda excitado. Queria poder apunhalar sua alma gêmea, mas ela estava escondida num mundo distante...
Foi um velório maravilhoso. Consegui reunir a família. Até meus filhos choraram... Quando os policiais me levaram, ainda pude ver a roupa negra esvoaçante sobre os sapatos plataforma atrás de um mausoléu. A alma tentava se esconder...
Eu sabia o que estava fazendo. Não me arrependo de meu luto! Faria tudo novamente, existem coisas que estão escritas. As almas não deveriam se encontrar. Pelo menos, nesta encarnação...
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/01/2005


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