Colcha de Retalhos

"O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa." Holderlin

Textos

BEATRIZ NAVEGANTE (mandado de segurança literário)
REMÉDIO EXTREMO


ENCAMINHAMENTO

Tornarei o presente documento de conhecimento público, pois tenho dúvidas quanto ao seu correto encaminhamento. Ainda não encontrei o protocolo do Céu. Assim, deixo nas mãos dos homens e solicito, encarecidamente, que se , porventura, um ser humano souber o procedimento ou conhecer alguma autoridade competente, que envie esse tratado para conhecimento e adoção das providências cabíveis.


IDENTIFICAÇÃO

Meu nome é Beatriz Navegante, mas já fui conhecida por outro nome, devido à alteração que submeti minha denominação. Contratei viagens por mares desconhecidos, ancorei e permaneci em porto alienígena. Fui feliz. Mas com o tempo e a constatação de que a sociedade não estava tendo o resultado esperado, lavramos consensualmente o distrato, e, solta das amarras, voltei a ser apenas navegante. Beatriz Navegante.
Nasci num país descoberto. Até hoje não entendi bem o significado disso. Questiono o sentido com que a palavra descobrimento é aplicada. O duplo sentido é evidente, mas deixo para os cientistas políticos a elaboração desta tese.
Sou de família de classe média. Como uma representante típica, meus ancestrais se apresentam como filhos de imigrantes com origens na aristocracia de povos diversos e nas mãos proletárias de trabalhadores que conseguiram vencer na vida. Assim, resta evidente a possibilidade que tenho de incorporar o orgulho e a pretensão dos nobres e a dignidade e a luta dos pobres.
Ressalto que não está descartada a possibilidade de mistura de raças, porém não há relatos ou documentos que dêem veracidade a isso. Sendo conveniente que a afirmação de que há um índio em minha árvore genealógica, seja utilizada com moderação, já que algum interessado possa se sentir ofendido. Talvez o processo de colonização persista e os índios continuem escondidos nas selvas. Em meu caso, sob as folhagens da árvore dos meus ancestrais.
Os fatos narrados acima são verdadeiros alicerces para uma passiva e conformada adaptação na classe média. Mesmo que, nos dias atuais, não estejam assegurados os alimentos do dia-a-dia, com a qualidade de uma dieta balanceada. O que se verifica é que, dependendo do regime (alimentar ou de governo), o corpo tem que se adaptar com as restrições dos excessos - de peso ou de poder.
As classes, verdadeiramente, não me identificam. Classe, na minha concepção, deveria ser algo mais concreto. Contudo, considerei que, diante da amplitude do meu pedido, devesse mostrar que vivo à margem de determinados valores, e não alienada dos mesmos.
Cabe esclarecer que meu viver é alicerçado em pilares de realidades concretas. Trabalho, pago tributos e perdi a capacidade de questionar o que é devido.
Talvez meu aprendizado tenha sido realizado no período de turnos intensivos em que só os mestres eram ouvidos. Naquela época, considerava-se que opiniões divergentes causavam desordem. O que será desordem?
Conheci o alfabeto como o legítimo e as palavras como as morais e obedientes. Minha linguagem sempre foi rebelde, mas como tinha um certo receio, criei uma forma própria para não ser codificada. Aderi ao partido da poesia.
Em compensação, meu raciocínio matemático é predominantemente lógico e sistemático. Chego a ser reacionária quando estou envolvida nas certezas das somas, subtrações, divisões e multiplicações, sempre com números (sujeitos) determinados.
É incoerente, mas me justifica. Meu discurso é indignado, crio figuras irônicas, refugiada no paralelo poético. Contudo, sou mestre em somar o que ganho, diminuir o que foi estabelecido como razoável para minhas necessidades e sobre esse montante aplicar o percentual da minha contribuição para a construção de uma sociedade livre e justa.
Questiono qual o significado que os entes tributantes entendem por sociedade livre e justa. Não há liberdade de trabalho e justiça na divisão do que é arrecadado. Lamento não ter competência para criar regulamentos que definam a matéria, contudo, ainda acredito que um dia votarei em alguém que possa.
O leitor deve estar achando que me distanciei do objetivo dos meus dados cadastrais nesta inicial. Mas, não! Tendo atenção, conseguirá ler nas entrelinhas e perceberá: cidadã, contribuinte direta e indireta, alma caridosa e idealista. (Note-se que o meu idealismo não pode ser considerado subversivo, podendo, ainda, ser considerado massa de manobra para alguns oportunistas.)
Resido no local em que posso trabalhar e pagar um aluguel razoável. Tenho sido um pouco nômade, por motivo de sobrevivência, e atualmente estou morando na foz de um rio, nos limites de culturas e povos diversos e no encontro de um centro delimitado nos próprios limites.
Estou numa fase em que minhas metáforas estão dominadas por figuras bucólicas – rios, margens, pássaros, foz...- enquanto minha linguagem busca vocábulos jurídicos, até mesmo brocardos, para poder cumprir as formalidades extrínsecas da minha ação.
Comprovada a idoneidade da autora e a devida qualificação, passo a discorrer sobre a ação competente e o meio de representação.


MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO

Durante muitos anos me preparei para este feito. Minha prática forense é ampla e abrange ações contra diversos tipos de autoridades, entre elas, destaco: pai, mãe, professor, chefe, e alguns chatos.
A experiência, unida ao estudo da base legal e fundamentos, não me deixou dúvidas quanto ao tipo de ação a ser impetrada. Meu caso é extraordinário, não há direito a ser constituído. O ato da Autoridade Coatora fere direito líquido e certo, reconhecido pelo próprio Criador – o direito à vida eterna. Direito inconteste.
Considerando, ainda, que o objeto do meu pleito é infinito, vide afirmação acima, não há de se falar em decadência ou prazos estabelecidos para interposição de recurso.
A autora da ação constitui a si própria como bastante procuradora para receber intimações e praticar os demais atos processuais.
Conheci algumas instituições, religiões, seitas e procuradores isolados que afirmavam ter linha direta com o Criador, chegando a se enobrecerem por terem certos privilégios. Mas nenhuma das representações mencionadas conseguiu minha filiação. Sempre fui contrária aos sindicatos muito organizados e com acesso privilegiado aos governantes.
Não pensem que sou egoísta, ou estou querendo privilégios exclusivos, pois o documento está disponibilizado para todas as criaturas. Inclusive, atesto que não cobrarei honorários advocatícios, caso a presente petição seja reproduzida com os fins de assegurar o direito nela pleiteado para os demais.


AUTORIDADE COATORA

A primeira vez que me deparei com a morte tive a impressão de que a mesma era um fato. Uma simples decorrência da vida. Não estou falando aqui sobre a morte praticada pelo homem, da qual, como não sou usuária, não tenho conhecimento de causa.
Durante a infância, meu olhar procurava alguma explicação nos templos. O único homem que tive a certeza de que morrera era Jesus Cristo... Eu o conhecia de vista... Mas a morte continuou a ser um mistério. Nunca me explicaram o que era a tal de ressurreição.
Quando, finalmente, aceitei a subordinação ao Senhor – Deus existe! – percebi que a morte era apenas um ato imposto pela Autoridade Impetrada para, no curso do processo de purificação da alma, criar algum critério de seleção para os demais planos celestiais.
O item acima pode ser considerado como mera suposição. Mas, deverá ser imparcialmente analisado, salvo se o Criador apresentar provas que demonstrem que tal ato – morte – tem finalidade diversa da disposta pela Autora.
Desta forma, resta comprovada a legitimidade passiva da Autoridade Impetrada, conhecida e registrada nos cartórios terrenos com nomes diversos.


ATO COATOR

Desde o início dos tempos, o homem tem-se confrontado com a morte. Contudo, poucos tiveram a ousadia de se rebelar diretamente, e a questão da morte – tratada como um fato inevitável – deixou de ser relevante diante das perspectivas de vidas futuras, vidas eternas... Apesar das diversas visões e muitas divergências, constatei que todas convergem para um tipo de vida eterna depois do inevitável.
Há poucos anos, passei a me questionar sobre o fato inevitável e invadiu-me a seguinte interrogação: O inevitável será mesmo necessário? Tentei encontrar as respostas em mim... Só encontrei um ser impotente e sem conhecimento.
Desta forma, o mundo passou a ser meu laboratório experimental e pude observar as pessoas de diversos credos e culturas, e até mesmo sem nenhuma, e cheguei a conclusão de que, independentemente de religião, as pessoas percebiam a morte de formas diferentes.
Transcrevo a seguir as minhas constatações:
- há pessoas que passam a vida esperando o tempo passar;
- há pessoas que passam a vida correndo contra o tempo, mas sem nenhuma realização;
- há pessoas que vivem a vida, mas o tempo não é suficiente para os seus projetos;
- há pessoas que passam a vida, tentando fazer a vida dos outros mais curta;
- há pessoas que, cansadas de passar o tempo, matam literalmente o tempo, abreviando o inevitável;
- há, finalmente, as pessoas que não entendo.
Devemos analisar a vida eterna como um direito que pode ou não ser usufruído. Assim, determinados grupos não o exercem por falta de interesse e outros deveriam ter esse direito cassado por falta de ética.
Mas, no presente caso, a autora gostaria de que, respeitado o bem incorpóreo do livre arbítrio, a mesma tivesse a possibilidade de escolher em que plano gostaria de viver a vida eterna.
Considera ainda que o ato coator, atribuído ao Criador, é um ato que obsta a finalidade essencial da existência da  autora, ou seja, ver sua semente se multiplicar, até ter bastante representatividade na espécie humana, ou até mesmo dominá-la (no bom sentido, é claro).
Certamente, existem outros motivos de ordem pessoal que serão analisados minuciosamente nos anexos constantes dos presentes autos, para que a autora considere sua vida atual na terra como a mais próxima da perfeição e tenha eleito a mesma para usufruir de sua imortalidade.


“FUMUS BONI IURIS”

Brocardo jurídico, de origem latina, que significa “fumaça do bom direito”. Expressão muito utilizada em mandados de segurança, haja vista que demonstra a existência do direito
Desculpo-me pela explicação acima. Sei que o Corpo de Julgadores, de tão superiora instância, não só sabe o significado das expressões latinas, como também é co-autor. Contudo, estou distribuindo o presente mandamus entre os homens e, se não for bem explicada, a expressão pode ser analisada de um ponto pejorativo.
Voltando ao “fumus boni iuris”, cabe ressaltar que ainda não vejo, com vivos olhos, a fumaça. Todavia, todos sabem que existe sempre uma luz no fim do túnel. Esta luz pode ser de uma pira... E, em meu raciocínio simplista, pira lembra fogo, fogo lembra fumaça...
Logo, o “fumus boni iuris” está demonstrado. Onde há fumaça, há fogo, e é melhor prevenir do que remediar. Assim, o mandado de segurança preventivo está bem fundamentado.



“PERICULUM IN MORA”

Os juristas gostam muito da língua latina. As expressões têm muita musicalidade e causam bom impacto quando são lançadas entre os leigos.
Periculum in mora significa perigo na demora.
Egrégio Juízo Final, data máxima vênia, devo esclarecer que o mandado de segurança que impetro é PREVENTIVO.
Sinceramente, espero que não tenha perigo na demora, mas se os Ilustríssimos Julgadores acompanharem os noticiários, verão que o mundo está cheio de homens que passam a vida tentando fazer as dos outros mais curtas.
Há grupos que, de tão religiosos, tentam exterminar os demais para chegarem antes ao Reino dos Céus. Existem até os homens-bomba, tipos que enquadro também na categoria dos homens que, cansados de passar o tempo, matam literalmente o tempo...
Porém, devido à complexidade do psiquismo de tais indivíduos e à minha falta de conhecimento específico, prefiro afirmar que são homens que eu – definitivamente – não entendo
Os governantes mundiais estão preocupados com o tema. Acho até que eles necessitam destes conflitos para manterem as funções.
Porém esta ação é individual, tendo por objeto apenas a vida eterna da autora e sua finalidade social de prazo indeterminado. A vida dos demais deverá ser analisada em ações próprias.


“QUOD ABUNDAT NON NOCET”

É muito importante utilizar os jargões, principalmente no meio jurídico. No meu estágio no mundo, aprendi que quando o advogado consegue explicar para o cliente o caso, o causídico é considerado medíocre. É fundamental, na relação entre procurador e procurado, que o primeiro oculte algo nos subterrâneos da linguagem, a fim de demonstrar, com ênfase, a complexidade do problema do procurado.
Assim, os jargões servem para dizer o óbvio de modo incompreensível. Devo dizer que isso não é fácil, necessitando ainda de qualidades inerentes ao homem como, por exemplo, uma certa arrogância.
Esse tópico é apenas para dar corpo ao presente pedido e utilizar outra expressão em latim...
Ademais, o que abunda não prejudica...


AUTORIDADE JULGADORA COMPETENTE

Estando todas as formalidades intrínsecas e extrínsecas rigorosamente cumpridas pela Impetrante, Beatriz Navegante, na formulação do pedido, resta dúvidas quanto à autoridade julgadora competente para apreciar o presente “mandamus”.
Em todos os regulamentos e doutrinas estudadas não foi possível a identificação da estrutura de tal poder judiciário. Não são de conhecimento público a estrutura e o funcionamento do poder divino, principalmente, quanto à existência de poder que controle as execuções do Governante Supremo.
Diante de tal impasse, se for comprovado que o Criador exerce o poder de forma única e soberana e ainda declarar a própria suspeição para não atuar no presente processo, deverá indicar um Juízo que possa ser imparcial na análise do meu pedido. A princípio, indicaria, s.m.j., um poeta que conseguisse decifrar minhas metáforas.


PEDIDO

Os motivos pessoais que levaram a Autora à impetração do presente “writ” serão relatados nos documentos em anexo.
A utilização do remédio extremo (nome pelo qual também é conhecida a presente ação) está amplamente demonstrado, assim como a presença do “fumus boni iuris” e do imprevisível – e não desejado – “periculum in mora”.
Destarte, não restam quaisquer dúvidas que a Autoridade Coatora vem praticando abuso de poder, ao avocar para si a competência de praticar o ato, ora inquinado, violando a faculdade do livre arbítrio da Autora. A morte emanada pelo Criador não encontra qualquer respaldo legal nas Escrituras Sagradas.
Ante todo o exposto, a Impetrante Beatriz Navegante vem requerer o deferimento preliminar da tutela extracelestial e que, após a intimação da Autoridade Coatora e de ouvidos todos os envolvidos e enxeridos, seja concedida a segurança, determinando, de forma definitiva, que a Autoridade Impetrada se abstenha de praticar o ato coator, respeitando o direito de viver da autora.


ASSINATURA


Beatriz Navegante, brasileira, 31 anos, divorciada, mãe, poeta, funcionária pública e, por enquanto, mortal.


ANEXO I


FEIJÃOZINHO

Os instintos de perpetuação da espécie mesclam fome com saciedade. A necessidade de deixar brotar em meu corpo a perspectiva da imortalidade é voraz. As estações se repetem, mas são finitas.
Sonhei e já era realidade. Desejei ser mãe e estava grávida. O solo fértil do meu ventre propiciou a formação da semente. A vida vingou em mim. O prazer e o amor acariciavam o corpo da mulher em êxtase de realização.
Deixei a primavera me dominar e floresci. Passava horas conversando com o que viria a ser meu futuro.
Quando fui ao médico, perguntei qual era o tamanho do que me preenchia inteira. Desejava saber tudo o que acontecia em mim, para entender qual era o meu novo eu.
Sentia-me como uma borboleta no primeiro vôo. Misto de fascínio e medo.
O médico foi profissional. Sério, respondeu: “do tamanho de um feijão”.
Fiquei perplexa! Como minha vida poderia estar tão diferente por um grão?
Feijãozinho! Minha semente passou a ter esse nome. Ela me alimentava com o teor dos sonhos e saciava minhas inquietações.
Quando a gestação estava no quarto mês, descobri que havia duas mulheres em mim, sendo que uma ainda era um projeto.
Adormeci.


GRAVIDEZ

Logo após a longa chuva, o céu se coloriu de um intenso azul. Tão intenso que ofuscava os olhos que nada viam a não ser o infinito.
O campo irrigado também se coloriu. A superfície incorporou um vivo verde e, sob aquela planície, germinou uma semente, preenchendo todo o espaço, sugando toda a água dos riachos fronteiriços.
Apenas uma, sendo todo o sonho.
Passaram-se dias e noites com o céu do mesmo azul, enquanto o campo intensificava o verde a cada impulso da semente lançada. A cada movimento, o grão se ondulava, atribuindo-se um nova forma.
Evolução. Em cada novo ciclo da lua, renovam-se os movimentos. Pulsação que cresce e diminui ao encher o pequenino coração.
Talvez existam sonhos nessa pequena semente que já tem gosto de menina. Mas o que poderia sonhar se ela adormece embalada nos meus sonhos?
Germinar, a primeira primavera de um ser. Um raio de sol a iluminar a esperança do solo e o renascer de um sêmen radicado nas entranhas.
O corpo transforma-se. Ora é de uma menina que me é íntima, ora, oculta a face, minha desconhecida.
Por instantes sinto que somos um único ser, mas a lucidez alerta que existem duas mulheres em mim. Dois desejos que se aproximam e confrontam apenas em movimentos.
Sinto mais amor!
O corpo assume formas imprevistas. É estranho caminhar sem ver os próprios passos. Ter cada vez mais assumida a feminilidade sem poder olhar o próprio sexo.
Muitas vezes sinto ser toda sexualidade – um corpo repleto de pulsações. Fui a fonte e me transformei em vida.
Amo-me mais...
Tornei-me em minha própria amante e com o instinto dos animais domino o corpo. Aproprio-me das sensações para desapropriar-me de mim.
Não há um momento que não sinta o corpo se movimentar – nosso corpo – único corpo. Rego uma enorme ansiedade em ver minha semente transformada em um bebê presente no mundo, como também alimento o medo de deixá-la perder-se de mim.
A sua existência é certa na certeza da nossa existência. Ocupamos o mesmo espaço. Ela existe em mim – meu corpo como extensão do outro; meu corpo completo, fecundado pelo que existe de mais sagrado.
Vida laureada de vida.
O dom de gerar e a necessidade de proteger. Um misto de inspiração e instinto numa barriga que se empina orgulhosa do conteúdo que ostenta.


NASCIMENTO

Brinquei de ser com um não eu. Adormeci no calor do sonho. Sonhei e resgatei a crença nas fantasias...
Quando amanheceu em mim, meu sol nasceu!


VIDA

Sinto uma emoção estranha, como se estivesse num plano suspenso. Tudo somos nós – sublime -, mas tudo também é muito vulnerável.
Vejo minha filha chorar, e não contenho meu choro. É como se ainda compartilhássemos o mesmo corpo e as mesmas emoções.
Muitas vezes tento limitar minha sensibilidade e deixo transparecer calma. Todavia minha calmaria é frágil como uma nuvem que se dissolve em chuvas.
Esse universo novo, paralelo ao mundo comum, é a verdadeira primavera da mulher. Colher o fruto e deixá-lo amadurecer sob o calor do deslumbramento.
Minha filha começa a conhecer o mundo, enquanto tento reconhecê-lo para poder nos firmar em solo firme sob a proteção dos dias ensolarados.
Tornei-me num verdadeiro álbum a guardar todos os momento, retratos que a vida não pode macular: primeiro sorriso, olhares, mãozinhas tentando agarrar o mundo...
Em cada sorriso da minha filha, aprendo a rir com mais felicidade; em cada olhar, olho-me com mais verdade. Conheço-me, enfim...
Sonhar sob a guarda do que é eterno e guardar dentro de mim a sensação de me perpetuar no infinito.
Sou mãe, não posso morrer!


BARBARELLA


Barbarinha, Barbarella,
A menina da janela

Muitas vezes no correr do nosso dia-a-dia deixamos de dar atenção a pequenas coisas.
Quem vê um passarinho voando? E certamente eles voam em todos os lugares, mas estamos com tanta pressa que só observamos o chão por onde nossos pés nos levam.

Barbarella era uma menina linda de apenas 4 anos. Em sua casa ela tinha uma enorme janela e ali passava os dias a observar tudo. Cuidava do sol, da lua, dos pássaros e até mesmo das formigas...
Quando sua mãe voltava do trabalho, ela contava todas as novidades, mas a mãe sempre estava muito cansada para ouvi-la com atenção.
Um dia Barbarella percebeu que os pássaros não estavam cantando, apenas voavam. E assim passaram-se dias, os passarinhos voavam rapidamente de um lado para outro, mudos.
Ela tentou falar com a mãe, mas ela estava muito envolvida com o trabalho para se preocupar com passarinhos, ainda assim pensou: - Preciso arrumar alguma coisa para Barbarella fazer, ela já está inventando coisas...
No dia seguinte os pássaros continuavam mudos. Barbarella tentava em vão falar com eles, eles continuavam agitados voando para todos os lados... Vôos calados.
De sua janela, Barbarella tentava em vão avisar as pessoas que passavam na rua, mas cada um caminhava na própria história sem perceber a menina da janela ou os passarinhos.
Compreendeu que seria inútil alertar o mundo sobre sua preocupação e continuou na janela observando o movimento dos pássaros. Até que eles subitamente foram desaparecendo.
Barbarella resolveu que seguiria o primeiro pássaro que aparecesse, a fim de descobrir o motivo do silêncio dos passarinhos. Surgiu um pássaro, ainda filhote, voando baixo e Barbarella foi correndo atrás, quando se deparou com muitos pássaros, milhares, milhões... Talvez todos os pássaros do mundo estivessem reunidos naquele parque.
Havia um pássaro de óculos, com grande topete loiro, traduzindo todos os idiomas numa língua universal, e assim todos conseguiam entender, até Barbarella entendeu.
Basicamente a linguagem era feita de signos de amor. O verdadeiro motivo daquele encontro era a preocupação dos pássaros com a extinção de um animal que há muito estava no mundo, um animal que estava abandonado à própria sorte e que havia se transformado no próprio predador. O bicho homem estava se extinguindo e os pássaros não sabiam como amparar aquela espécie que, apesar de se julgar tão superiora, demonstrava tamanha vulnerabilidade.
Os pássaros concluíram que por enquanto voltariam a cantar nos vôos, voltariam a tentar alertar o homem de sua extinção, esperando que o homem acordasse da alienação em que adormeceu a fim de conseguir lutar pela sobrevivência ou que pelo menos não continuasse a ser a causa de seu extermínio.
Barbarella a princípio pensou que fosse uma brincadeira, mas quando notou que estava em um parque no centro da cidade com aquela infinidade de pássaros e que os homens passavam em volta ou até mesmo entre eles e não percebiam, ela compreendeu que a preocupação estava mais do que fundamentada. A extinção do homem começou com o fim dos seus sonhos, a extinção da percepção do homem e do seu mundo, a extinção do homem como senhor de si.
Os pássaros terminaram o encontro declarando que o homem estava aprisionado no cativeiro da vida e que sem estar alimentado com a alienação da falta de tempo e da insaciável necessidade, o homem estaria entregue a um mundo que ele não conseguia usufruir, havia perdido a naturalidade de se sentir saciado com a beleza das pequenas coisas e o gosto do que simplesmente é gostoso.
Barbarella saiu do encontro impressionada. A seriedade da preocupação dos pássaros e a certeza de que ela tinha que tornar o homem mais consciente da sua situação, tornou-se uma obrigação. Barbarella tinha consciência que neste momento havia se transformado na janela do mundo.
Os pássaros a ensinaram que a vida era muito maior do que a janela da sua casa, que os grandes sonhos devem seguir os percursos dos grandes vôos e que mesmo no papel de observador, nós ainda somos os imperadores absolutos da vida e devemos cuidá-la como um bem precioso.
Barbarella chegou em casa tarde, rodeada de passarinhos que havia conhecido no encontro do parque. Sua mãe estava  preocupadíssima na janela, pensando no que poderia ter acontecido com sua menininha. Afinal, Barbarella era apenas uma menina de 4 anos sozinha na rua.
Quando se encontraram, a mãe de Barbarella começou a chorar de felicidade e Barbarella, com seus enormes olhos negros, observava-a calmamente e pensava: - Minha mãe também está em risco de extinção, ela é uma adulta que passa a vida esperando o tempo passar, está tão preocupada com os problemas do dia-a-dia que esquece de sentir a grande dádiva de viver.
Barbarella contou tudo para a mãe sobre o encontro dos pássaros e de sua preocupação com a vida humana. Sua mãe estava tão assustada com todo o acontecido que ouvia e sorria, como quem ouve uma história bonita, mas logo percebeu os pássaros ao redor e viu que o que Barbarella contava podia ter algum sentido. Verificou que realmente sua vida corria risco de extinção se continuasse a viver apenas por viver. Não teria sentido ser mãe de Barbarella sem compartilhar as vivências de sua filha.
A mãe de Barbarella continuou com todos os problemas e as dificuldades da vida adulta, porém sempre que tem um tempo livre, deixa-se preencher pelas travessuras da filha. Todos os domingos, as duas são vistas juntas em parques, aprenderam a aproveitar o máximo dos dias coloridos e compartilhar as fantasias. Dizem até que já as viram voar junto a uma revoada de pássaros, mas isto é uma outra história ...


ENSINAMENTO

Resgatei em uma história infantil minhas metáforas. Apropriei-me da ingenuidade da infância da minha filha para demonstrar como nasceu em mim a lucidez e o grande amor pela vida.
Aprendi meu novo significado. Terminei a história retornando ao centro da realidade:
Barbarella continuou a observar da janela os belos dias ensolarados, a grandeza dos vôos dos pássaros, enfim observa, até mesmo, os passos apressados dos homens, mas apreendeu que o que melhor podemos observar é a nossa própria vida, usufruir a alegria, sentir a fragilidade, a fim de fortalecer os ânimos para enfrentarmos nossos grandes vôos em busca dos verdadeiros sonhos.
Esta história pode ter sido apenas fruto de um sonho de Barbarella, afinal, ela é apenas uma criança de 4 anos, mas certamente a vida da sua família mudou e, aos poucos, ela foi mudando o mundo. Barbarella ensinou que um sonho infantil pode ser um alerta para que todos possam dar mais atenção à própria vida, sentir os próprios passos, ser responsáveis pela escolha dos caminhos.
A vida é maior do que podemos perceber da janela. Devemos nos apropriar da vida como da infinita possibilidade de ser, o que só será possível se nos libertarmos do cativeiro e formos livres para sermos felizes. A grandeza de ser a grande janela da nossa história, refletindo a paisagem das nossas vivências.
Inspirada no mundo natural e na necessidade de procriação, escrevi no corpo o enredo da minha maternidade e, durante meses, projetei o que seria a minha maior criação. Dei a luz e nasceu em mim um novo sentido para viver.


ANEXO II


PALAVRAS

As palavras sempre me serviram de refúgio do mundo. Encontrei nelas a forma de expressar o que sinto, sem precisar me mostrar. Mas eram palavras silenciosas, quase caladas. Eu não as escrevia.
A linguagem brincava de esconde-esconde dentro das armadilhas dos sentimentos. A criança se realizava e criava novos símbolos para se camuflar.
Acho que foi nesse momento que a poeta nasceu em mim. No baú de brinquedos, armazenei retalhos de pensamentos e palavras de encaixe para, amadurecida pelo tempo, relembrar minhas fantasias.
Durante muito tempo, apenas vivenciei os sentimentos sem transcrevê-los. Comecei a escrever no entardecer da puberdade.
As palavras borbulhavam no pensamento e desaguavam no solo trêmulo das mãos. Tentei ordenar os sentidos, mas eles, como frutos maduros, caíam das árvores no solo dos papéis em que escrevia.
Muitas vezes caíam sobre o meu corpo, marcando-me com o conteúdo que eu pensava desconhecer – frutos maduros do inconsciente.


COMPOSIÇÕES

Não sei o que iniciou o processo. Até hoje me pergunto qual o motivo que teria me impulsionado a escrever. Perco-me em indagações sem respostas – motivos para novos escritos.
As primeiras poesias se apresentaram tímidas. Os temas eram triviais, para esconder o medo de desvelar os sentimentos. Palavras bonitas alinhavadas com musicalidade.
As metáforas chegaram mais tarde... e por meio delas desnudei meu ser. Senti vergonha da exposição, contudo, percebi que o mundo não compreendia minha linguagem. Continuou-me indiferente...
Escrever é necessário! Quando já não me agüento, sou mais do que posso, desabo nas linhas do meu papel em branco incorporado.
Componho-me na elaboração dos sentimentos. Rio, choro, desespero-me... Até que enfim adormeço.
Passou a tempestade...
Desperto de cochilar em mim. Percebo-me e sou céu aberto. Observo os escritos e vislumbro as nuvens que se confrontaram em raios. Escuto a voz dos meus trovões.


PAPEL EM BRANCO

Com o tempo, acostumei-me com a sensação de acordar como um papel em branco. Olhar no espelho e não me reconhecer na imagem do que fui ontem.
Olho-me e o reflexo aos poucos me traz a realidade, porém nesses dias estou marcada pela dispersão e só estarei convencida de que sou eu, quando a linguagem extravasar e me mostrar que já não sou a mesma.
O pensamento é confuso. Sinto-me desenhar com traços esquizóides. Ouço vozes e as reconheço – minhas vozes! Salvo-me da loucura, condenada a confessar meus esconderijos.
Tenho necessidade de me prender no concreto, para não transcender junto às palavras. Presa às amarras da realidade, deixo o pensamento voar, voar longe... e aterrizar nas minhas composições.
Poeira ao vento – poesias com versos livres; relatos, experiências – figuras de linguagem. Predominam minhas metáforas, tentando ocultar minha nudez em vestes transparentes.
Consinto e me penetro. Fecundo o feto da minha essência no desvendar-me em desconhecido.
Dou forma concreta ao meu viver.


PROCURADORA DE MIM

Vivo de minhas revelações. Porém, durante muitos anos senti vergonha de me revelar – era um eu que se apresentava e um não eu que se enterrava, ou vice-versa.
Sentia que ao me ler os outros veriam minha loucura, dominariam minha fragilidade, até me calarem definitivamente e me tornarem em mais uma refém do mundo. Será morrer deixar o pensamento anestesiado enquanto o íntimo se desespera?
Talvez a morte não tenha linguagem. Talvez seja a letra morta, uma alma penada que agoniza e não se expressa.
Guardei os escritos na gaveta. Permaneceram quietos, obedientes aos meus desmandos.
Um dia precisei me procurar e não me encontrei. Busquei-me no mundo, no outro... Continuei sem me compreender. Até que reli os escritos.
Renasci. Cada palavra parecia percorrer o corpo, dando sentido ao pulsar da minha vida. Meus traços estavam desenhados em cada estação. Reconheci-me.
Lancei as palavras ao vento. Filhos no mundo, liberdade em mim.


FUTURO

Há dois anos conheci uma menina de 8 anos, cabelos anelados e voz rouca. Encantou-me o orgulho com que declamava suas poesias. Traduzia para o papel o sonho de qualquer menina dessa idade – ser uma linda princesa -, mas diferente das demais, tinha a coragem de assumir a fantasia e com a musicalidade própria dos versos da infância destilar os próprios desejos.
Assustou-me ver uma menina com tamanha ousadia e um mundo tão indiferente. Percebi que ela ainda não o conhecia.
Aos poucos, o reino das fantasias deu lugar a poesias cheias de metáforas e conteúdo. Suas palavras, ainda infantis, dizem mais do que muitos homens conseguem a vida inteira. Certamente, se suas idéias se propagassem seríamos mais coerentes.
A menina poeta me ensinou a não ter medo nem vergonha de sonhar. Quanto acordo, tento me lembrar do que sonhei e se não me recordo, crio um sonho para alimentar o dia.
Aprendi a valorizar a grandeza de poder ser hoje o sonho de uma criança. Não precisar esquecer os sonhos infantis. Sou a realização do meu sonho e só percebi isso quando conheci a Ângela.
Tento homenageá-la, afinal, ela resgatou minha criança adormecida, mas minha história é incompleta. Tento preencher o enredo com suas figuras poéticas, que destaco, e deixo para  que, no futuro, ela complete:
Ângela é uma menina muito especial. Com oito anos escreveu suas primeiras poesias e descobriu o que queria ser quando crescesse: Princesa do reino da Poesia.
Hoje, com dez anos, o que era desejo se tornou realidade e Angela com seu jeito alegre, declamando poesias, havia sido reconhecida por mérito como a legítima herdeira do reino da poesia.
A poesia de Ângela nos mostra o mundo infantil levado a serio. A capacidade de poder ver a beleza nos pequenos detalhes do mundo. Ângela também tem grande preocupação com os homens. Os seus escritos demonstram indagações sobre a pobreza e a infelicidade.
A poeta percebeu que os adultos que ainda criavam histórias, guardavam-as no meio de papéis. Ocultavam do mundo a face poética, para não perderem a postura de executivos da vida. Pessoas com vergonha porque pensavam diferente.
Com leveza, nas declamações, foi convencendo os envergonhados a mostrarem os escritos, e lançarem no mundo suas idéias. Afinal, Angela é a princesa do reino da poesia e, no seu reinado, as palavras são nobres.
Ainda envolta em muita inocência, a menina também percebeu a tristeza nos semblantes dos poetas, perdidos na multidão, que de tanto serem ignorados, não se reconheciam mais. Diante desta realidade, Angela criou, em seu reino, um espaço intitulado Paralelo dos Humildes Poetas para que estes pudessem descansar e que finas gostas de chuva fria os despertassem para a beleza.
Sonhar... Pensar no futuro, na vida, no amor...Navegar no pensamento – rio de chocolate.
Quando quero distanciar-me de tudo, viajo para o Reino da Poesia e descanso no paralelo da minha realidade.


DESFECHO

Estou viva nos personagens. No mundo paralelo, nossas imagens se unificam.
Sou presente como o reflexo que me representa, enquanto as palavras viajam no tempo e se imortalizam.


ANEXO III


TRABALHO

Realizo o trabalho que não me realiza. Não é apenas um jogo de palavras, ou minhas armadilhas metafóricas. Significa que torno real o que me proponho a fazer, mas não é o que me engrandece na realidade. O trabalho apenas me sustenta.
Não me sinto à vontade para dissertar sobre os valores do trabalho. Alguns homens o fizeram com maestria, consagrando princípios fundamentais, como o da dignidade.
A ambição que possuo aparece nas horas livres, quando minha obrigação é não fazer. Nesse momento, sou dominada pela vontade de ser, ser mais do que tudo... Ser mais do que sou!
Crio novos projetos, desenho os sonhos... quando finalmente me endeuso nas possibilidades.
O trabalho é a minha comunicação com o mundo. Em nossas conversações, falamos a mesma língua. Sou boa ouvinte e escuto, calmamente, todos os meus deveres.


FRUTOS

Uma vez li que o problema da humanidade estaria resolvido se cada um resolvesse os próprios conflitos. A independência de navegante, o poder de traçar o rumo e a necessidade de dominar os ventos, tornou-me forte o bastante para compor os conflitos em mim, sem precisar sobrecarregar o próximo. A humanidade está desembaraçada das minhas âncoras.
O máximo a que me atrevo é rabiscar-me de vivências e sentimentos para ser lida pelos demais. Prova de que compartilho as experiências...


ANEXO IV


CONHECIMENTO

Nasci em decorrência, nasci com... conheci. Embaralhando as palavras, desenvolvo meu conhecimento. Conheci, nasci com... certamente nasci com o amor e, certamente, posso afirmar que conheço esse sentimento.
O sentido de amar é presente e inevitável. Sinto que todos que conhecem o sentimento têm a necessidade de senti-lo na presença ou na saudade. Sorrir o riso romântico ou chorar o pranto emocionado. Aventurar-se com dedicação absoluta...
Compreender o amor é conjugar o verbo em nossas vivências
Personifico o sentimento, torno-me num eu apaixonado, e vivo navegando o mar que ondulo na inconstância das minhas estações, aprofundando o conhecimento.


ENCONTRO

Quando tive certeza de estar viva, busquei minha imagem no espelho. Senti-me. Amadureci, maliciando o sentimento, e tive de procurar no outro o meu reflexo. Criei em minha imagem um nós idealizado, concretizei o desejo ambíguo e compartilhado.
Colori a face e redesenhei o corpo. Traduzi a fusão de corpos. Conheci o outro, nasci com o outro... Amei-o...Novamente, descobri-me...
Imprimi no corpo a síntese de nossa história. Engravidei...


DESENLACE

No mar da minha existência, o desejo é a única bússola que obedeço. Sou plena! Não tenho o dom de voar, todavia navego.
Assim, despeço-me da minha história ao porto. A felicidade existiu e as lembranças a imortalizam.
É momento de partir, volto livre ao mar. O horizonte me deslumbra... É distante e inatingível. Novamente sonho...
Meu amor é liberdade!


POSSIBILIDADE

Desgarrei-me de todos os sentidos que não fossem os meus. Libertei as velas da embarcação e sou o próprio rumo...
O prazer de poder assumir que sou dona de mim, e a possibilidade de me dar ao outro.
Entregue ao mistério, permaneço navegante...


ANEXO V


SABOR

Escondida sob o céu aberto...
Presa fácil das fantasias. Tento firmar os olhos, mas não consigo. Os olhos se dispersam no desvelar do inesperado.
Pensei ser impassível, já vivi... Porém percebo que quando me perco, acho-me.
O olhar de um homem me penetra, desnudando-me. Desejo logo me entregar, mas me retraio no medo.
Retorno ao oceano. Demoro a dormir... apenas sonho. Sinto seu perfume respirar em minha pele.
Paixão e desejo. Desperto e largo o leme para me deixar banhar pela morna brisa. Deixar o mar camuflar-se no outro e me preencher inteira, umedecendo-me as entranhas.



PRAZER


Entrego-me ao sal e ao calor.
Torno-me maresia.



ANEXO VI


DELITO

Incontáveis erros me marcam – cicatrizes de tombos inocentes.
Minha infância está marcada pela sombra dos erros alheios. Os enganos maduros deixaram marcas na minha criança. Cresci e as cicatrizes cresceram em mim.
Os pequenos delitos que cometi na infância foram perdoados, afinal, a criança ainda é ininputável.
Não deixei de errar quando cresci. O erro que propiciou a minha sucessão de desvios foi não ter a capacidade de me reprimir.
Os olhos do mundo são atentos às imperfeições. Como tive de me adaptar aos padrões alheios, aderi à permissividade no meu eu.
Sinto a opressão do que poderia ter feito. Considero até que isso é o meu verdadeiro delito.
Não tento ocultar os erros, afinal as cicatrizes são janelas cerradas na fachada do ser.


PROVA

Anúncios do consciente – pensamentos – ilimitados velam e desvelam a verdade, confessando os detalhes vividos.
Fragmentos abstratos que se materializam em provas concretas.
Retalhos de lembranças alinhavados.
Não me lembro... Sonho
Quebra-cabeças do inconsciente.


CONDENAÇÃO

A vida nasceu em mim com uma obrigação – nasci e estava viva. Aos poucos fui me apropriando dela como um bem.
Aprendi a ser criativa em minhas fases. Tornei a vida em algo singular e único. Construo a felicidade em mim e no outro, engrandecendo os sentimentos.
Parte de mim é compassiva e aceita as determinações sem questionamentos, mas o todo se rebela e indaga: MORRER SERÁ MESMO NECESSÁRIO?

ANEXO VII


ATESTADO

Meus antecedentes são os possíveis dentro do contexto vivido. A pluralidade do meu eu se unifica em uma única palavra – viver.
Minha descendência se desenvolve com êxito. As realizações são vivenciadas com perspectivas.
Renovam-se as possibilidades.
Ante todo o exposto, atesto a veracidade de todas as metáforas exercidas e a idoneidade de um ser que retribui a vida, vivendo...



DISTRIBUIÇÃO

Distribuo a presente inicial entre os homens. Meus fatos lidos e analisados pelos meus pares.
Indago a liquidez do direito. A audiência do meu Eu está adiada sine die, mas certamente ela ocorrera em data inesperada.
Espero que a certeza do meu direito traduza o animus para sustentar meus argumentos nas inconstantes ondas... na constância da vida.


Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 01/03/2013


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras